quinta-feira, 3 de março de 2016

Pasto

Não estava nem aqui pra isso. Não sei precisar o pra quê. Nunca precisei. Precisão cirúrgica no instante das coisas, aliás, nunca foi a minha medicina. A minha sina mede a energia dos fatos e já é difícil por bastante percebê-lo. Por isso uma medicina. Por ter que prostrar-me diante do movimento do momento, parar tudo dessa engenharia de tempo, queimar os véus mais densos com fósforos que me queimam também os dedos e por fim, poder me olhar cru como ave recém-nascida e sinistra e frágil e linda por detrás das alegorias. Todo olhar-se é espelho e também se faz como cura. Não é o olho que olha. É o dentro. Quebra toda a argamassa mundana do que a mente emana e eletriza todo o vácuo que se torna o todo. 
Sinto em mim o peito de São Francisco de Assis, mas me adensa o falo vermelho de Exu. Sigo rindo. Passando as mãos pelas costas posso sentir os poros dilatados dos quais saíram, um dia, penas. Não tenho pena de mim. Mas sempre estou sendo punido. E ungido, e abençoado. O mundo é um tapa e um aperto de mão, um trato, um tato. Sigo eu mesmo me flechando em sangue, me caçando pra me comer, na egofagia, na emboscada de ser meu maior inimigo. Sou o composto delirante que une treva e luz - buracos que flecho e escapam a pura energia branca do plasma e buracos que fecho e escarpam distâncias do que busco. Mas quem se deita comigo em gozo na lama mundana? Meu amigo eu. Sufoco no amor de cobras retorcendo em mim, estrangulando esse eu que me ama e jogo a casca na composteira dos dias. Doo a dor às minhocas, que tem sabedoria em transformar tudo em ar pra terra. Depois refaço-me, refascino-me, me assisto refacista e me abraço, melhor amante. Luto contra e amo mesmo, tem que ser assim. É como se fosse coisa de brincar de gangorra, indo ao céu e caindo na vala, rindo e chorando nas parábolas ascendentes e decrescentes das linhas de meus lábios frios. Tem essa história de que fomos e seremos sempre poeira de tudo, mas não me acostumo. A minha sorte é que a anima que me galopa. Trota em mim todo o desejo e também o Ser. Sou cavalo, cavalgadura e aparelho, esse corpo que traz consigo a fagulha do imortal. Agora esqueci meu corpo – não deitei na cama. Quis ficar nessa imagem da fagulha. Isso vai me ajudando. Essa coisa de corpo pesa. Volto lá naquele pássaro recém-desovado, com o pouco de pena colado de gema, vendo o mundo sei lá com que olhos, esperando o vento que vá busca-lo ao voo. Estou ali no ninho, incontinente, minha mãe pássaro é o mesmo que Deus, me mostra o que tenho à volta, como devo piar, cantar, voar, comer as minhocas que alimentei, fugir das cobras que se enroscam em amor perigoso. Cuidado com a cobra, que traz segredos e mistérios, mas traz a língua bifurcada, diz de dois modos o que a ensinaram. São Francisco me visita, me dá seu dedo como um galho firme. Exu passa e sente fome de ovos. Dali voo. Voo de Dali, tudo me derrete, o tempo derrete porque não mais me existe. Derreto e sinto o luxo de entregar-se à esfera – talvez ali.
Teve essa coisa toda de santo, em mim ficam aquelas imagem dos olhos ao alto, orações também ao alto. O expiar dos santos revela a quem vê na superfície uma vida de sacrifício e resignação. Mas por trás há gozo, deleite do pós-trauma. Eles sabem sofrer e depois rir como se fosse piada. Nunca gostei de piada. Me contam e eu forço riso pra não chatear. Eu rio de cada coisa que nem acreditariam se eu fosse rir agora. Mas não estou achando graça, ainda estou lá no expiar dos santos. Tenho a impressão de que é como eletrochoque, algo que perpassa em descarga e depois ilumina. A dor é tanta que tudo o que é ruim vai por baixo, a alma corre pros braços do Pai. Ou Mãe. Ou esse familiar que não tem palavra. Ficam nas catedrais os vitrôs doridos, por mais que coloridos. Mas o espírito deve ficar rindo de alguma coisa por trás.
Não estava nem aí pra isso. O próprio contínuo de letras atiça o pensamento de fluxo e num empuxo a correnteza leva. Quando isso acontece, é necessário dar pirueta, ser acrobata, pra retorcer e descobrir mais por si enquanto é arrastado. Se uma onda me levasse, não ia só deixar-me, ia fazer movimentos, balé do afogado. Ia ser um exercício. Compôr partitura corporal pra ninguém ver. Seria luxuoso poder mexer os braços e as pernas num desespero também controlado. Sempre à noite, constante em insônia, me projeto para lugares que preciso visitar. Às três da madrugada, vou à estrada, entro na mata, vou até uma baleia a cruzar o Pacífico – de um ponto onde nem se vê ilha – debaixo do holofote de uma lua. Vejo parentes que dormem com o rosto amassado, o porteiro da minha primeira escola roncando. Me colo na parte inferior de um avião que cruza a Índia, me agarrando pra não cair. Me pouso no cume daquela montanha que ninguém nunca foi – ali mora um buda. Tudo isso me traz paz, vou mesmo. Não me trato com imaginação. Minha medicina é ir mesmo onde a mente poderia me sabotar e ditar que é mente deslizando imagem. Tudo o que quero faço. E é de verdade. Tanto que dói. Há dois dias levei uma preta-velha na casa dos pais. E eu estava aqui, distante. A única dúvida é que ela tenha me levado. A minha seara de códigos é algo a me debruçar. Tudo me assusta porque é sem limite, mas tudo me abarca porque não tem jeito. Preciso entrar mais. Nunca cruzei um lamaçal, mas deve ser assim. É, é assim mesmo. Acabei de ver, de ir, de me arrastar lá. É como cruzar esse lamaçal, tal qual mesmo, porque é difícil chegar ali, a dois passos do que era antes. É persistência a palavra que procuro na lama.
Quando eu era criança a gente era de visitar família. Comia pêssego em calda depois do almoço com aquele tio que hoje nem me preza. Porém, hoje me visito mais. Como também e me empapuço com o que me preparo. E me prezo bem, parece. Essas visitas têm me feito bem. Na verdade, eu devia morar mais comigo. Quando a gente quer colo, não precisa chorar. É só pedir. A criança que não chora, sai ganhando. Quando morri das outras vezes, pedi colo também. Lembro daquele bicho com dente grande me entrando unha na carne e eu indo embora, sem acreditar. Ali chorei, mas também ganhei colo. Eu preciso te contar algumas coisas, mas enquanto não as descubro, sou verborragia porque ajo no agora. Não devo ser o máximo do interessante, mas preciso me contar pra mim mesmo, senão me perco. E me perder não seria bom caminho – já que tenho me visitado. Preciso voltar pro meu corpo, meu corpo inteiro. Será que há algo – que esse algo? – entre o espírito e o cavalo? Quanto pasto.

domingo, 18 de agosto de 2013

Casa do rio

A casa é a tapada pela árvore, próxima ao rio Bengalas. Atrás dos dois telhados - vermelho e cinza.

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Hoje, dia frio, mais que frio, em Friburgo, vou à varanda de minha casa pra ver as névoas cinzas azuis brancas cobrindo a ponta das montanhas. Olho pro rio que cruza lá embaixo da vista da paisagem e me vem a infância passando nas águas. Vi uma casinha branca e me lembrei de uma história: quando criança, eu e minhas irmãs tínhamos um imaginário fértil em relação às casas ribeirinhas, de costas pro rio. Elas ficavam apontando pra um casebre velho de janelas estranhas, lá no longe, e dizendo "tá vendo uns vultos pretos passando nas janelas, umas figuras estranhas?" E eu concordava e realmente via. E tinha a tal da casinha branca de janelinhas arredondadas que eu achava a casa mais linda do mundo. Como eu queria aquela casa... e, sem dúvida, ela era minha. Eu dizia "aquela casa é minha" e dizia pra todos, mostrava a minha casa na beira do rio. Uma vez um ônibus vermelho ficou à venda na outra margem do rio. Ele também ficou sendo meu por um tempo. Minha ideia o comprou. Depois a minha casa foi reformada, ganhou andar a mais, placa de captação da luz solar e uma árvore que subiu cobrindo boa parte dela. Ela não é mais minha. Não é mais, porque não digo, não mostro, não apresento aos outros e a mim. Mas é o alvo de uma lembrança, dos dias em que morei com os olhos naquela casa distante.

Marcelo Asth


terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Fico

Fico à espera de uma surpresa amorosa, de acordar sem esperá-lo e de repente saber que ele vem. Fico no aguardo, bobagens alimentando uma invenção da expectativa. Fico no sono do grude, do chiclete, da declaração, do amor desmedido, de uma certeza de carinho que explode. Fico, fico, fico, mas acabo me acabando. Um carinho demorado, um romantismo sofrido, uma idolatria como a que ele experimenta por quem o fascina. Mas eu não fascino, só cobro, espero, mando e desmando. Só não mando no que espero. Erro. Eros. Era. Fera. Ferra. Mão dada, coisa assumida, desejo de filme, me tornar importante. Mas sou uma sombra estranha, algo que chegou. Ficou. Sinto isso. Sinto muito.

Vera Ayub

sábado, 27 de outubro de 2012

não tem texto.

Aqui não é só blog de texto, conto. Aqui também tem pretexto, ponto. Pronto.

Saudade de amar no mar, amargura batendo onda estanque na primavera, queria eu ter saudade, saúde, idade, pra ser eu mesmo só, junto a diversidade.

Eu amo o meu amor e isso já é texto pronto.


terça-feira, 9 de outubro de 2012

Onda

Eu acordei de luto, completamente sem sentido e afastado de mim. Nada de alívio, sempre o pesadelo das ondas altas. Hoje sonhei que estava num prédio toda espelhado por fora. Do 8º andar (calculando pelo ângulo da minha visão, que ainda me recordo), via ondas que assolavam Copacabana, espancavam a Princesinha - talvez o sonho se deva ao fato de estar planejando ir à praia hoje. Essas águas se agrupavam e quando faziam maior massa no corpo magistral que surgia pronto para cair, recomeçavam o movimento; via algumas pessoas submersas, tranquilas, sob a onda - talvez essa imagem do sonho se deva à sequência de um filme bobo que passava à noite na tv, quando um homem tentava se salvar do fogo pulando dentro de uma água cristalina, de tom esverdeado. Meu pesadelo era assim; mas as pessoas não eram revolvidas, trazidas ao movimento da onda. As pessoas ficavam por lá, como se estivessem dormindo, de trajes de banho. 

Neste 8º andar, funcionava uma espécie de escritório burocrático - talvez essa imagem do sonho se deva à lembrança do escritório da Porto Seguro, no Centro do Rio, onde fiz o seguro fiança do apartamento que alugo; mas com a presença desse mar bravio. Por ser este ambiente, cheguei a este local com minha  máscara usual de sorriso e gentileza. Fui eu quem os alertou sobre o que acontecia no mar. O som era forte, estrondoso, impaciente e eles ainda não haviam se tocado de que o mar estava diferente. Convidei-os à janela, para que vissem a realidade e todos se chocaram. Ficamos todos calados, observando com foco o que ocorria: as ondas se agrupavam e quando faziam maior massa no corpo magistral que surgia pronto para cair, recomeçavam o movimento. 

Sonho não tem imagem, insisto em dizer isso. A impressão é que sonhamos em preto e branco, meio sépia. Mas as imagens são transformações da realidade mental, nosso arquivo. São fatos, palavras, mas não no que percebemos, mas pelo o que o cérebro percebe e faz suas conexões elétricas para estabelecer também associações. Por isso não temos imagem, nem cores. Temos lembranças, mundo fragmentado, que percorrem a formação de imagens. É sempre forte algo que se sonha, pois é um mosaico mais detalhado de que se tem conhecimento, uma colagem de fatos já passados. Eu tenho 25 anos - tudo isso de poros abertos, sentindo e me relacionando com o mundo - e também, registrando.

Minha vontade, caso eu vivesse o que sonhei, seria abrir as janelas e me juntar às pessoas que estavam sob as ondas - parecia ter uma camada de vidro sobre elas. Queria pular em cheio numa das ondas e deixar meu corpo explodir com a força de todos os movimentos da Terra. Queria perder todo o meu sentido, porque tudo é assim mesmo. A gente é dividido em fragmento de alegria e fragmento de tristeza. Mas quando vem a sucessão da angústia, da melancolia, do fato de não conseguir controlar a besta-fera que reside em mim... ela me controla e é por isso que eu tentaria voar sobre as ondas. Eu tenho medo do mundo e estou com medo de mim, que tenho medo do mundo. Eu tenho medo de todo mundo e me dói muito as poucas horas em que passo com o mundo.

Eu preciso nadar numa onda, preciso tentar repetir a posição do homem sob a onda ameaçadora. Eu vou hoje afundar o meu ser sob o mundo, sob a água, de olhos fechados, com água ao redor do corpo. Me afastar de tudo e de mim, esquecer do mundo. Eu quero olhar da praia algum 8º andar de um prédio pra tentar me encontrar, quero ver o mar na fachada espelhada. E quero ver a imagem brotar no espelho, gigante: se der sorte, que essa onda avalanche estanque no peito, se agigante da minha fragilidade e me engula o corpo inteiro. Quero me deixar, quero lavar os lutos, completamente sem sentido e afastado de mim.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Nuvens


É engraçado... você está em tudo, presente em todos os meus olhares, em todo o meu mundo. É impressionante... as nuvens despencam pela montanha, nada densas, espalhadas. Instantaneamente, me vem uma voz interna que não é minha, mas é sua, compartilhando as belezas e a efemeridade dos acontecimentos naturais... daí vem um click, uma foto, um sorriso, um olhar distante. E o meu olhar no seu, até nos momentos em que estamos longe.

Marcelo Asth

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Eterno

Sei que sou eterno, uma sucessão de muitos. Dentro disso há toda a dimensão de minha pequenez. Sei e me sinto assim. Me compreendo essa partícula que está no meio das toneladas de pó que se acumulam. E nesta vida, não desejo me punir por não me ver grande. A diferença dos grandes homens para os ditos pequenos é nada. Ser lembrado pela história das bocas? Jamais! Quero a liberdade de ser eu, com todo o limite, criando vínculos, tentando me definir da forma mais aprazível a mim. Não digo: fazer o bem (mesmo este sendo predominância), pois todos somos humanos e os sentimentos espalhamos. Não sou alguém do mal, meus caminhos são guiados pela boa educação de olhar o outro. Doçura. Sou um ser humano meio tépido, em cima do muro, desbotado (nem cor, nem ausência). Sendo assim, todo miúdo, sabendo quem sou, eterno, tangenciando o bem, espalhando o afeto, sei que dali a pouco me torno finito. E vou progredir alma, minha casca estará tombada. Talvez vá pra outro planeta; toda vida é uma missão. Daí posso ser o gigante que alguém espera. Por enquanto, fico aqui, sem anseios de ser o que não posso nem quero. Pois tudo no mundo é a cobrança de ser algo que não é. A transformação é imperiosa e vem gritando, sempre. O que mudar, será mudado. Me esforço para estar mudando para lugares de paz, felicidade. Fujo dos lugares falsos, com muita gente rolando ego, bebendo esgoto, esgotando tudo, fedendo a egoísmo. Busco sempre dignidade, prazer, amor, sexo, família, o bom do conforto (que não se confunda ao luxo) e coisas que encantem meu olhar. Por isso sentencio algo pra mim: não sou acomodado. Por vezes preguiçoso - admito, não há mal algum nisso. Mas é na preguiça que se cria o ócio, que pode gerar o criativo, ou a ruína da ansiedade. Já entendendo o lugar da preguiça, aciono o botão da melancolia e fico ali me maturando até explodir "chega" e sair do ninho. Daí dou boas voltas, faço, faço, faço, faço, ação e me canso. Retorno em vitória. Mas necessito férias. Quero progredir espírito, mas para isso não preciso saber o mundo inteiro. Pretensão saber de tudo, burrice fugir de tudo e se aquietar no nada. Eu sou tépido, meio-fio, em cima do muro, sol das 18h. Não sou o que explode a maravilha de fazer alguém se apaixonar e idolatrar. Não sou o que move montanhas e gentes nos rastros. Tenho minha luz interna, mas é roxa, boa pra ficar numa boa, de abracinho. Eu sou essa coisa que se define e não sabe de nada. Eu amo muito, demais, sou louco e dou o coração em sangue pra ser assim. E meus olhos brilham por isso. Adorei passear por cada canto com o amor, medir ruas e palavras, cama, chão, palavras, cidades, olhares. Estou dentro de outra pessoa também. E quero adorar muito mais, para além. Quero viver como um broto nesse outro, saindo verde pela culatra, esbanjando a clorofila dos ramos felizes. Não quero sofrer, tenho preguiça disso. Sofro no detalhe. Vou alcançar o máximo da liberdade e da felicidade plena no amor. Sou todo eu, todo seu. O mundo vai me consumir, não sei quando. A validade é pouca, outra, um dia a Terra sabe. Pode ser velho, moço, no auge, no fundo do poço. Eu sei que sou dessa pequenez de que são feitas as estrelas bobas, miúdo, com olhos abertos para o que encanta. Eu amo, me amo, amo esse viver a vida. Não tenho grandes expectativas - não serei flagelado por isso. Minha expectativa é estar em sintonia, crescer pra mim mesmo e não me aguentar de sorriso.

Marcelo Asth

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Verdade ou Consequência


                 Aliás, bastou uma noite para ruir um templo de memórias, pois a vida – como já se sabe – é feita de escolhas. Era muita determinação esmerada conferida àquele relacionamento amoroso. Era - porque se desfez este templo, com as cariátides se pondo a baixo, altaneiras despencando em cheio no concreto. Eram, antes, dois - e isso era certo. O incerto é que o mundo é maior que os dois e por volta passeiam vários planetas. Por vezes um campo de atração inexato polariza um clima e um planeta explode se colidindo de uma maneira que nós (seres firmes) não pensamos nunca em vivenciar.
                Mas acontece que, numa noite estúpida, entre amigos de anos (dessas pessoas que vivenciam e compartilham tudo, incluindo liberdades), Thiago se pôs a beber em roda e em risos – longe de Ana Paula, a namorada, que estava viajando de férias, na casa dos pais. Thiago, na casa de Carolina (uma ex-namorada, agora amiga), entre seus amigos, chegou a fumar um cigarro – coisa que não fazia. Parecia a liberdade entre seus amigos ser tanta e tão colorida que resolveu embarcar na onda dos demais. O problema é que, toda a fortaleza do namoro de Ana Paula e Thiago, todas as juras de amor e todos os momentos, poderiam não aguentar a rodada de Verdade ou Consequência, 7 cervejas, um clima amistoso, lembranças passadas e os braços de Carolina (a ex).
                Thiago realmente era forte. Não só no físico, mas no que propunha como escolha de vida: seu namoro inabalável, rondado de ciúme, carinho demasiado em proteção, promessas e filmes que rodavam em projeções futuras. Mas Thiago era sonso e não sabia negar – o que fez dele alvo de suas convicções, pista de prova para uma corrida contra si mesmo.
                O jogo começou a partir de uma voz tonta e bêbada de Guta, uma descoladinha da roda. Pegou uma garrafa vazia de cerveja e bradou como novidade: Ah, vamos jogar “Verdade ou Consequência”? – uns toparam no ato, outros fizeram muxoxo, mas cederam à diversão.  O assunto anterior à proposta repentina era “Sexo” e ali começaram a relembrar histórias do grupo de amigos, a expor intimidades e até segredos mais picantes. Relembraram de uma historinha engraçada de “Carol e Thi” – os dois se riram e se abraçaram. Essa coisa de lembrar a época das experiências gera um clima que é normal entre jovens reunidos, ainda mais de longa data. Mas é um clima que tonteia – mais que a bebida. Acontece que Ana Paula estava feliz demais com os pais em Grussaí, pegando uma cor, pensando em Thiago e mandando mensagens para o celular dele a cada hora. Ele, enquanto reunido com a galera nesse dia, não olhou o celular que estava vibrando dentro da mochila, num canto do quarto de Carolina.
                O primeiro a pagar a prenda foi Levi, que se levantou claudicante, com a perna dormente de tantas horas sentado rindo e bebendo. Mas, em pé, teve que mostrar uma pinta grande que tinha na nádega esquerda – aí todos riram e Maria Isabel deu um tapa em cheio em sua bunda. O segundo foi questionado sobre um assunto íntimo e contou uma verdade, sobre sua namorada – chegou a imitá-la gozando. A terceira foi bem rápida: contou uma verdade boba. O quarto, este de nome Thiago, teve que ir além. Pagou uma consequência, incentivado por palmas e coro de “beija-beija-beija”. E Thiago assim, deu um beijo de 10 segundos em Carolina – que desmontou lívida. Foi só isso no jogo. Fingiram não acontecer outro clima mais sério, deram andamento. Nesta noite, Bebel e Danilo ainda ficaram, quando tudo já era lixo.
                Ficou tarde, sem metrô ou ônibus seguro que passasse. Thiago, Mayara, Levi, e Maria Isabel foram convidados por Carolina a ficar na casa dela. Enquanto desenrolavam 3 colchonetes sujos e poeirentos, Bebel e Danilo anunciaram que iriam para um motel. Um coro de incentivo e piadinhas foi ouvido com o mesmo tom das idiotices de grupo. Thiago, nesta hora, a tantas da madrugada, foi à mochila, verificou o celular e viu uma mensagem da namorada, que dizia estar comendo pizza com a família, que também mandava beijo. Terminava com: “boa noite, tô com saudadessss”. Ele passou uns 12 minutos respondendo o SMS, por estar em outro tempo. Forçou a cabeça para não escrever errado, escrever besteira. Pesou a consciência por poucos segundos, pelo beijo do jogo. Mas ele se enganou, pensando que aquilo não era traição, que era algo simples, de amigos antigos. Pensou até com desprezo em Ana Paula: “ah, ela nunca me deixa ver os amigos e agora está em Grussaí...”. Thiago, zonzo de sono e de porre, desligou o celular quando Carol entrava no quarto. Ela disse que tinha um lugar na cama dela e que os outros já estavam caindo pelas tabelas, sobre a poeira dos colchonetes. Ele não viu problema: eram amigos, nada mais. Mas Thiago era sonso e não sabia negar – o que fez dele alvo de suas convicções, pista de prova para uma corrida contra si mesmo. E Thiago foi se enganando, Carolina se entendendo. Os dois se deitaram e Carolina abraçou Thiago, é claro. Não teve jeito de controlar a ereção. Ela – justamente ela, que Ana Paula vivia com ciúmes, dizendo ser ela tão feia e de um passado tão imaturo do namorado -, como já esperava, passou a mão no short de Thiago e o resto foi de uma consequência e de uma verdade que não estavam em jogo. Foi burrice, coisa de sonso, de jogar consigo mesmo, dizendo ser tudo normal. Entre amigos ninguém fala nada. Segredo dele é segredo dela.
               Acordaram os dois juntos, com olhos abertos quase que concomitantemente. Ele soltou um: não acredito. Ela riu e disse não ter problemas. Thiago sabia que Carolina não ia contar nada, nem os amigos. Afinal, eram amigos de anos, longa data. Com Ana Paula ia ficar tudo bem: ela ia saber da noite dos amigos, ver poucas fotos (de antes da galera bêbada e sem foco), perguntar um “se comportou?” e receber um “claro, amor”. Talvez ficasse chateada, por ele ter dormido lá. Mas ela ia saber que Thiago dormiu com Levi e que Carolina tinha ficado com Danilo, que havia pintado um clima. Ana Paula não ficaria com verdades, nem consequências – ficaria com uma mentira entupida, ainda sorrindo por ser mais sonsa que o namorado. Eles se amam tanto!
              Isso tudo em uma noite. Aliás, bastou uma noite para ruir um templo de memórias, pois a vida – como já se sabe – é feita de escolhas.

Marcelo Asth

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Madame Lise Feu de la Mer





Ao contrário da distinta Confeitaria Prodígio, onde a moda francesa avançava as calçadas e mascarava os detritos, a Camerata Leopoldina acendia suas luzes por volta das 19h para um público de homens ricos, artistas, músicos intelectuais e bons bêbados, numa rua torta e estreita do boêmio bairro do Olegário. Por lá, as meninas traziam um brilho e eram escolhidas a dedo para dançar e cantar números ousados, onde mostravam as coxas nos palcos e as nádegas nos bastidores. Era o ano de 1922 e tudo corria bem por aqueles arredores, onde a alegria parecia se instalar como parceira de farra – quando a polícia não dava batida e levava a escumalha arruaceira das intermediações. O local era frequentado por policiais sem farda, que não pagavam o ingresso (eram pagos para entrar e se comportar como homens livres) e entravam em troca de uma vista grossa para algumas das liberdades tomadas no espaço.
Logo na entrada, via-se a chapelaria, comum nos clubes ou casas de chá. Mas além da grande porta vermelha encapada – de onde se ouvia um burburinho de ruído musical – os bons costumes davam folga aos homens que já chegavam desabotoando os punhos e desatando os nós das gravatas. O calor era grande, tanto pelo ambiente não muito ventilado, quanto pela provocação das rendas e das poucas carnes expostas por aquelas musas, que assim permitiam viagens de euforia, que se davam na soma da cocaína vendida nas farmácias (ao lado de depurativos, elixires e garrafas de Coca-Cola). A música era uma bomba, aprovada pelos homens rudes e também pelos frequentadores de ouvido refinado e fino trato. Era popular, profana, delicada: tornava o ambiente a casa dos prazeres, com tons franceses de acordeão, vindos de cantos distantes e oníricos. Pois parecia - depois de atravessarem aquele portal divisório – transporem-se para uma área distante do globo terrestre. Rolavam entre os adolescentes mais espertos dessa época, pequenas revistas de mulheres com pêlos avantajados no púbis, seios redondos e sorrisos etéreos. Mas ali, para aqueles homens, aquilo era mais que concreto às vistas: o lar das maravilhas. Tudo compunha: o cheiro de bebida, perfume e suor, as luzes tímidas de penumbra e os pequenos focos de velas sobre as mesas, um mobiliário refinado onde não se precisava escorar ou sentar com a devida elegância do espaço público, lá fora. E fêmeas, poucas, em número certo, livres e lindas, que cabiam nos olhares e na imaginação dos muitos pagantes.
Este local nunca seria o mesmo. Impressionante pensar como uma presença feminina iria revolucionar não só aquele espaço febril, mas toda a cidade comportada. Madame Lise Feu de la Mer - Lise para amigos íntimos que a visitavam depois de suas apresentações e a levavam para jantares e passeios. Era esta uma francesa recém-chegada ao Brasil, mulher de fogo, artista renomada no país de origem, amante dos que a alçavam às alturas sociais. Queria devorar a todos e tinha trejeitos de santa. Viajou para o Brasil com a promessa de ser a maior musa de cabaré das Américas. E foi. Pagavam caro para vê-la, e bons políticos presenteavam joias. Alucinava com seu número de entrada, sem a presença de coristas. Era somente ela, com um foco de luz nos lábios, o corpo sendo seduzido aos poucos por outras luzes que espocavam e expunham um feitiço que nenhuma outra conseguia alcançar. Começava assim a noite espetaculosa: palco escuro, expectativa... uma cortina se abria com uma perna da fera e um canto de sereia assombrava e fazia tremer as pernas daqueles homens que estavam ali para serem fortes. Ninguém resistia à voz daquela mulher e uma cortina brilhante - uma miríade de estrelas - anovelava-se a ela. Mas apenas uma estrela era capaz de brilhar naquela escuridão. Ouvia-se, doce e calmamente, maliciosa e gostosa, a voz que convidava ao delírio: Ma chambre est un repaire de la luxure, la colère vient à démêler. Mes fenêtres sont ouvertes à la brise. Quand j'ai vu que tu étais là, à regarder mon jour à l'autre. Qu'ai-je fait? Vous avez demandé à chanter!
Era mais velha que muitas das meninas, conhecia o can-can com a habilidade de suas pernas longas, mas não mais o dançava. Exibia-se agora de jeito delicado, sem ser ágil, com olhos fuziladores. Era diferente das outras – não era vulgar nem se estadeava à toa. Tinha olhos exóticos de madrepérola, uma tez nívea, uns lábios de tom rosicler, naturais e carnudos, que faziam coreografia com as palavras: Qu'ai-je fait? Vous avez demandé à chanter ! Era um mar de fogo.
As esposas, revoltadas com a estrela vinda de fora – que mexia com os maridos, arruinava fortunas familiares e era, de fato, a mulher mais quente na cidade – ficavam nos lares rezando, e quando cochichavam umas com as outras, entre muros e vizinhanças, rogavam pragas e ficavam curiosas por ver a francesa fresca – como a chamaram, de cara. Apelidaram-na de Madame Lisa Fedida de Merda. O apelido mal educado rompeu o silêncio e as mulheres passaram a invejar e a maldizer a francesa da Camerata Leopoldina. Mas os jornais não lançavam charges ofensivas nem davam espaço para essa onda contrária que crescia. Apenas manchetes de elogio e de anúncio da grande artista. A Camerata Leopoldina, que antes da chegada de Madame era um antro desesperado da luxúria, tornara-se um local sacro, um espaço de devoção e de grandes números musicais. Ganhara outro status.
Madame Lise Feu de la Mer passara agora a frequentar a Confeitaria Prodígio, o que causou uma balbúrdia na sociedade e aplausos de outros artistas que a reconheciam como brilho único. Lá nunca ia sozinha – estava sempre acompanhada de algum amigo que lhe pagava o chá de hortelã e torradas. Era convidada para rodas de intelectuais, palestrando sobre as modas, os costumes e as vanguardas artísticas. Não era a mulher mais inteligente do mundo, mas sabia sorrir e falar as coisas mais agradáveis de suas experiências – que ninguém sabia se eram verídicas, mas eram sempre detalhadas com boas passagens espirituosas. Tinha sido amiga de importantes literatos franceses, dizia. Muito bem vestida, com rendas, chapéus requintados, perfumes originais, sapatos únicos – as mulheres morriam de inveja por ela ser francesa de verdade, dona de toda a moda e originalidade que elas procuravam alcançar. Aos poucos foi sendo melhor falada nos círculos, mais desejada nas rodas, mas sempre invejada. Era mulher de verdade, possuía um terremoto na alma, era sensível e de opinião. Ganhou seu espaço, vários espaços, jornais, a cidade inteira.
Albertino, um garçon novo na Confeitaria, nunca tinha ido a Camerata. Era de uma família portuguesa, usava um belo bigode e tinha seus 23 anos. Dona Isaurinha, sua mãe, rezava diariamente para que seus meninos não fossem homens de fraca índole e não podia imaginá-los andando por aquelas bandas de pecado. Dona Isaurinha nem gostava do fato de Albertino ser garçon de uma confeitaria frequentada por artistas. Mas ele ganhava bem, era bom moço e garboso, tinha um nível de estudo razoável e ia à missa aos domingos.
Um dia, Albertino viu Madame Lise entrar pela porta do meio da Confeitaria. Sentiu seu perfume de longe e por pouco não derrubou a bandeja quando viu que a mulher olhou diretamente para ele. Neste momento, Lise com um olhar de ímã arrastou o garoto a seu pedido. Estava sozinha e queria um chá de hortelã com torradas passadas em manteiga – tinha um gosto simples e isso gerava admiração das cocotas que olhavam de soslaio o que a madame consumia. O chá foi servido e Madame entregou a ele um lenço de seda, com um perfume doce e delicado. Disse quase sem olhar seus olhos: At-on jamais dit que vous avez les yeux effrayés d'un loup? – algo do tipo : Alguém já disse que seus olhos são de um lobo medroso ? O menino não entendeu nada e pediu desculpas. Ela então soltou : Já visitou a noite de uma estrela? Vous me donne envie d'être jeune. Ela teve vontade de ser jovem com ele. E assim, convidou-o a passar uma noite na Camerata. O rapazola ficou vermelho, pediu licença e foi atender outra mesa, sem tirar os olhos da Madame – que também o olhava. Perguntou discretamente a Rodolfo, amigo garçon da casa, quem era aquela mulher. O amigo riu da ignorância do jovem e disse que ele estava carregado pelas asas da sorte. Nunca Madame tinha se dirigido a um garçon diretamente, entrado no recinto chamando por alguém. Perguntou o que ela entregou para Albertino e ele se intimidou ao dizer que tinha em seu bolso um lenço de seda daquela mulher. Rodolfo não acreditou que Albertino desconhecia a figura de Madame Lise, que só a conhecia de nome. Pudera. Era novo na Confeitaria e vivia uma vida religiosa e calma – não por vontade, mas por costume. Foi para sua casa tentado pelo convite que recebeu, por aquelas palavras que não paravam de ecoar em sua lembrança. Nada tinha sido entendido em francês, mas ele entendeu toda a intenção daquela epifania. À noite, sob o lençol, pôs o lenço perfumado em seu pênis, por debaixo das grossas ceroulas. Se masturbou com medo de ser descoberto na calada da madrugada, mas só teve ali um êxtase, um gozo como nunca, um desejo de mulher. Passou a andar com o lenço no bolso de seu uniforme de trabalho, para que dona Isaurinha não descobrisse - enquanto fuçava suas roupas sujas – os vestígios de um sonho. O rapaz andou distraído, pensando na mulher, zonzo como encantado. Passou a comprar os jornais em que a mulher aparecia sorrindo como uma deusa, passou a perguntar para os amigos como era a Camerata. Até aprendeu o primeiro verso de seu famoso número no cabaré : Ma chambre est un repaire de la luxure, la colère vient à démêler. Assobiou no banho. Passados três dias, Madame retornou à confeitaria certa de quem seria seu atendente. Seu pedido foi o de sempre, mas seus olhos passeavam de forma constrangedora pelo corpo do garçon. Albertino, desastrado com aqueles olhos que o desestruturavam, esqueceu para fora de seu bolso a ponta do lenço dado por Madame. Ela, reconhecendo, sem hesitar, puxou o lenço dobrado e colado pelo sêmen do rapaz. Ela cheirou o lencinho e pediu para que Albertino fosse à Camerata naquela noite. Naquela noite ele não podia – não havia dado tempo para desculpas no lar.
Madame Lise não era virgem, como todos sabiam. Muitas mulheres, mesmo casadas e com vários filhos, pareciam ainda virgens, tanto era o recato, em todos os sentidos. Madame era uma mulher vivida, mas não era flor que qualquer um cheirasse. Os garçons amigos de Albertino não podiam, durante o trabalho, mostrar-se ansiosos pelos detalhes, mas acabado o expediente, vibravam quando sabiam de alguma palavra que ela tinha soltado ao jovem novato. E ficavam abalados de inveja. Todos enfrentavam a fila para a Camerata – nem sempre entravam. E só Albertino ficava em casa, a imaginar a dama da noite. Certo dia, deu-se por resolvido que iria à Camerata, ver Lise como aquele mito. Em casa, disse à mãe que queria melhorar de vida, melhorar os estudos, juntar uma fortuninha para seu futuro e para sua mamãe amada. Disse ter sido indicado a uma vaga no Jornal do Meio Dia, e que teria uma entrevista no Centro, naquela noite. Decidido, disse que o expediente era noturno e que seria uma alavanca para a vida deles. Passou, assim, a frequentar a noite boêmia.
No primeiro dia que se pôs na fila, enfiou-se num chapéu para não ser reconhecido. Não entrou no casarão antigo. Voltou no dia seguinte, viu alguns clientes da confeitaria e gelou. Depois viu Rodolfo e pensou que se ele era antigo na confeitaria e frequentava aquele lugar, também não havia de ter problemas para ele. Entrou pela porta vermelha encapada, ouviu o ruído da música de um outro mundo e se pôs dentro da farra da Camerata. Na mesma expectativa dos outros homens, sentou-se numa cadeira, ao fundo e um delírio passeou elétrico por seu corpo jovem. Como tinha decorado algumas palavras e trechos melódicos de abertura do número musical, se colocou pronto para silabar com ela seu francês treinado, de ouvido. Mas o número era outro. Sem cortina, entrou Madame, sob aplausos e gritos, com máscara de tigresa cintilante de brocal preto: Un chasseur de larges épaules de jeunes m'a regardé, dame de la jungle. Il vise la carabine dans mes yeux, frissonne quand il entendit la voix de la bête... uma música animada que levou ao delírio todos os homens que ali estavam. Madame desceu do palco e ao ver Albertino na plateia, foi direto a ele e rugiu como a besta da selva que cantava na música, pegando com suas garras falsas o chapéu do jovem. Meow, bébéterminou seu número com brilhantismo e galhardia. A cada semana agora apresentava um novo número e a casa passou a ter problemas de lotação. Madame era a estrela da cidade, a dona do coração dos homens.
Esperou a casa fechar para falar com a estrela. Era difícil : um mar de bêbados à frente se colocava como um muro de imbecilidade. Albertino sentiu um desespero, uma raiva desmedida e sem controle. Aquela mulher já era dele, em sonhos e nos olhares que ela lançava. Viu que saiu do camarim um outro homem, elegante e bonito, com a barba por fazer e a camisa desabotoada. Ébrio, percebendo alguns olhares, foi se ajeitando e saindo do cabaré, de sorriso torto na metade de seu rosto, cheirando a perfume doce. Albertino quis morrer, imaginando que aquele homem tinha acabado de estar com Madame em intimidades. Resolveu ir embora, mas não conseguia tirar da cabeça a mulher de seus pensamentos noturnos: Meow, bébé. No trabalho, encontrou com Madame novamente, mas fingiu não vê-la. Foi atender a mesa 13, fugindo com destreza da tigresa da noite passada. Pensou com intenção de ira e nojo: Madame Lisa Fedida de Merda - como soube também chamar.  Mas Madame, que ali estava estonteante e perfumada, foi até o moço, levantando-se da mesa e direcionando-se ao balcão. Ali, pediu para ser atendida por ele. Disse que não parava de pensar no bébé e que ela queria muito conversar em particular com o garçon. Logo Albertino mudou seus pensamentos, sentiu-se orgulhoso por ter total atenção daquela que todos queriam. Topou o encontro, saindo dali do trabalho e ingressando pela porta lateral da Camerata. Ficou se sentindo importante: aquela mulher me quer, a cidade inteira a deseja! Uma grande artista! E eu! Eu!
As horas nunca passaram tão vagarosas. Os minutos frouxos em lentidão. Dado o toque do final do expediente, Albertino saltou em galope para o local marcado. Bateu na porta da Camerata com discrição e aprumou-se, escondendo-se no chapéu para não perder o tino, a compostura e seu brilho. Era um rapaz bonito, de olhos amendoados e parecia mais velho que seus vinte e três. Seu bigode passava a ideia de virilidade, apesar do rosto delicado. Era alto, maior que Madame, e seus braços sonhavam conquistar toda aquela figura. Entrou no espaço, que àquela hora estava muito diferente do período da efervescência.  Um servente da Camerata disse que Madame o esperava. A porta do camarim, apenas encostada, era um convite. Cantava baixo uma cantiga velha, de algum cabaré antigo. Albertino bateu com decisão à porta e entrou sem esperar a voz de Lise. Ela sorriu e naquele primeiro instante, somente um papo demorado tomou de assalto os dois. Ela era mais inteligente e brilhante do que ele imaginava. Ela, com malícia, entregou a ele um novo lenço. Sorriu e ele, já sem a timidez habitual, procurou beijá-la. Ela o afastou, pedindo calma: depois da apresentação de hoje. Ele, afim de não mostrar-se tão fácil numa conquista - coisa de charme -, disse não poder estar presente no número, que tinha que estar em casa. Ela respondeu com encanto: ah, pode sim... Ma fontaine de jouvence, je me perds en toi...
      Depois daquilo, era certo que não havia desculpas do jovem. Ele iria ficar e visitar novamente o camarim da grande dama.

(continua)

Marcelo Asth

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Carpa Tubo Vermelho





A angústia cai densa feito granizo em câmera lenta, enuviando a garganta, manchando o solo, tapando os buracos, correndo água espessa. Bateu aquela pena de mim, dor de produto. É demais ser configurado humano. Tá na chuva para se molhar. 

A chuva cai densa feito granizo em alta velocidade, som martelante no coração. Eu tremi porque pensei que pudesse escangalhar. O coração se debateu de frio - carpa num lago escuro e serrano. Bateu aquela pena de mim, como quem bate clara em neves.

Todas as projeções me assombram. É como estar de frente a um beco de sonho, negro colorido, de medo e não saber se vai à frente ou acorda. Eu vazo um pouco do vazio da angústia nas vagas expressões de pena. É demais ser configurado humano: tudo é galeria, vitrine de um longo tubo vermelho de fantasia. Um pouco de liberdade sufocante. Nada mais.


Marcelo Asth